Dia Nacional da Praça

Foi a 8 de Setembro de 1936, que teve lugar a ação militar contra a ditadura que ficou conhecida, e gravada na memória coletiva da resistência ao fascismo, como a «Revolta dos Marinheiros», a única acção militar contra o fascismo até ao 25 de Abril que foi preparada, decidida e efectuada essencialmente pelas «camadas baixas» das forças armadas, no caso vertente marinheiros (grumetes, 1.ºs marinheiros e cabos), e suportada numa organização política específica, a O.R.A. (Organização Revolucionária da Armada), cujos objectivos de luta, pela ideologia e ligações ao PCP, se integravam nos objetivos democráticos gerais das massas populares e dos trabalhadores contra o fascismo, pela liberdade e pela paz.

O ano de 1936 caracteriza-se em Portugal pelo processo de consolidação da ditadura de Salazar (a 18 de Janeiro inicia-se o terceiro governo de Salazar, o qual se prolongaria até 27 de Novembro de 1968, e a 11 de Maio do mesmo ano Salazar assume a pasta da Guerra, cargo que viria a abandonar apenas em Setembro de 1944), e a nível internacional com os acelerados preparativos da II Guerra Mundial por parte do nazi-fascismo com os quais Salazar se identificava.

As comemorações do décimo aniversário da revolução fascista do 28 de Maio de 1926, que tiveram o ponto alto na Praça do Comércio que se encheu de gente, fruto da presença de uma grande massa de representantes dos sindicatos e trabalhadores obrigados a comparecer, transportados em camionetas fretadas pelos patrões, com a ameaça de desemprego para todos aqueles que se recusassem a participar na festa, marcariam o início da revolta dos marinheiros.

As intimidações aos operários para engrandecerem a festa do Estado Novo também chegaram ao navio que prestava honras militares às altas individualidades do poder. A sua guarnição recebera ordens superiores para levantar os braços em frente do Cais das Colunas e soltar urras de aclamação. Mas os marinheiros negaram-se aos festejos e quando passaram junto ao cais não fizeram qualquer gesto, permanecendo apenas em sentido. Essa atitude louvável fez com que o comando, e até a própria PIDE, começassem a ter alguns marinheiros debaixo de olho. Estava acesso o rastilho.

Com o começo da Guerra Civil Espanhola, o NRP Afonso de Albuquerque partiu para o país vizinho, com a missão de escalar alguns portos a sul e recolher os portugueses radicados nessas paragens que quisessem regressar a Portugal. Quando o navio chegou a um porto ocupado pelas forças governamentais, foram dadas ordens superiores, proibindo toda a guarnição de sair para terra. Os problemas surgiriam, dias depois, quando atracaram noutro porto, sob o domínio das tropas de Franco e foram concedidas licenças. As praças recusaram-se a sair, como protesto pela dualidade de critérios do comando, provocando mau estar a bordo. O comandante do navio ao constatar que parte da sua guarnição simpatizava com o governo da Frente Popular Espanhola, eleito democraticamente pelo povo, fez a respetiva denúncia ao poder central. A denúncia foi tal que mal o navio entrou no Tejo, já a PIDE estava plantada no cais, à espera dos prevaricadores. Quase toda a guarnição sofreu penas disciplinares, embora a fatia maior coubesse a 17 dos marinheiros envolvidos, que foram imediatamente expulsos da Marinha, sem direito a qualquer defesa.

A atitude injusta e prepotente da chefia da marinha semeou no seio da classe de praças um ambiente de indignação e de revolta que os levou a planearam uma ação de luta armada, que ficaria conhecida para a história como a “Revolta de Setembro”. O grande objetivo era ocupar os três navios fundeados no Tejo e sair à barra, fora do alcance das peças de artilharia, ameaçando disparar contra a Assembleia da República, exigindo a libertação dos camaradas que ainda se encontravam presos.

Na noite de 8 de Setembro de 1936, culminando um intenso trabalho de agitação e manifestações várias de descontentamento contra as arbitrariedades e a repressão fascista, pela defesa de direitos, pela melhoria do rancho, vendo com impaciência o governo a tomar medidas que ameaçavam seriamente os direitos conseguidos pelos marinheiros, um significativo número de marinheiros, iniciou a ação revolucionária apossando-se dos navios «Dão», «Afonso de Albuquerque» e «Bartolomeu Dias», aliás os navios onde as células da O.R.A. eram mais fortes e mais larga a difusão do seu órgão «O Marinheiro Vermelho», embora pensassem que teriam a adesão de outros navios.

O objetivo era fazerem um ultimato ao governo de Salazar para exigir a satisfação de direitos, o fim das perseguições e a libertação dos presos, tendo ao seu dispor o potencial de fogo próprio dos navios, que entretanto deveriam ser postos a salvo fora da barra.

A revolta, ao fim de algumas horas, foi sufocada. O governo fascista, tendo conhecido antecipadamente o que estava em preparação, teve tempo para tomar as medidas de resposta à revolta (desativação do potencial de fogo de navios e sabotagem das próprias máquinas, implementação de medidas para os bombardear caso se pusessem em marcha, o que veio a acontecer a partir dos Fortes de Almada e do Alto do Duque, tendo sido fortemente metralhados o «Afonso de Albuquerque» e o «Dão»).

A revolta acabou por ser reprimida sem dó nem piedade pelas forças afetas ao Estado, a que nem a aviação faltou. Nessa noite de 8 de Setembro de 1936, em que estiveram envolvidas 208 marinheiros, resultaram: 5 marinheiros mortos nos confrontos; 92 julgados em tribunal militar; 116 foram despronunciados; 82 condenados a penas entre os 2 e os 16 anos de prisão; 34 dos quais foram inaugurar o Campo do Tarrafal (5 pereceram aos maus tratos e ao clima agreste da Ilha de Santiago). O governo levantou logo o boato de que os marinheiros eram uns traidores que queriam entregar os navios à vizinha Espanha. A ditadura tremeu com este ato de coragem. A prova foi a repressão que se seguiu no interior da Armada portuguesa. Como os fascistas não se poupavam a meios para se manterem no poder, escolheram os marinheiros mais incómodos para estrearem o presidio do Tarrafal que ficou conhecido internacionalmente como o “Campo da Morte Lenta”, criado a 23 de Abril de 1936 através do decreto-lei n.º 26539.

As medidas contra os marinheiros revoltosos deram início a uma fase qualitativamente nova na escalada repressiva. As ações contra o regime foram identificadas como sendo contra a Pátria. Os julgamentos foram quase sumários. As penas aplicadas, atingindo em vários casos, 17, 19 e 20 anos de prisão, foram das mais altas aplicadas pelo fascismo. Dos 82 condenados, 48 foram enviados para a Fortaleza de Angra e 34 foram para o Tarrafal no dia seguinte ao julgamento, onde 5 deles viriam a ser assassinados, o que, somado aos 12 mortos no momento da revolta, dá um total de 17 mortos.

A inauguração do Campo de Concentração do Tarrafal foi acelerada com a revolta dos marinheiros. Criado com a ideia premeditada de liquidar os presos mais combativos e mais responsáveis e, por isso, destinado a quebrar o espírito de resistência, o Campo do Tarrafal adequava-se muito bem aos revolucionários do 8 de Setembro. Os marinheiros constituíram 1/5 dos selecionados pelo fascismo para a inauguração do Campo de Concentração do Tarrafal, o qual – e não sem razão – passaria à história como Campo de Morte Lenta, prisão onde centenas de presos antifascistas foram sujeitos à tortura permanente e 32 deles assassinados.

O 8 de Setembro de 1936, permanece e permanecerá como uma data memorável na história da luta do povo português contra a ditadura fascista e pela conquista da liberdade.

A revolta dos marinheiros, além do seu caráter de explosão de ódio ao fascismo, teve o mérito de revelar o descontentamento dos marinheiros, parte integrante do nosso povo, que ao fascismo salazarista votava profundo ódio. Desmontou ainda a mentira fascista de que a Marinha estava com o governo, o que, na época e no contexto geral da política de Salazar, abriu uma brecha.

A criação de condições propícias à organização de uma revolta deveu-se a alguns aspectos particulares: a composição social e etária dos marinheiros (na sua grande maioria jovens oriundos dos meios operários e do campesinato com algum nível de instrução); o crescimento dos efectivos em consequência da renovação da Marinha de Guerra feita pelo Governo (desde 1926 até 1933 foram adquiridos 18 navios, 14 dos quais já em 1933); o facto das guarnições dos navios se caracterizarem por uma relativa estabilidade por períodos prolongados, o que permitia a convivência e o conhecimento pessoal de cada elemento, fatores muito importantes para o desenvolvimento do trabalho de organização; as tendências democráticas muito arreigadas na Armada; e finalmente, e não pouco relevante, o facto do quartel dos marinheiros se situar junto do Arsenal da Marinha, empresa a cuja influência da O.R.A. era efectiva.

Aliando a luta pela defesa dos interesses socioprofissionais dos marinheiros, contra as arbitrariedades das chefias e a dignificação da condição de marinheiros, ao trabalho de esclarecimento quanto à natureza do fascismo e da sua política, ligando a luta dos marinheiros à luta dos trabalhadores e dos setores democráticos, ligando-se a organizações operárias, desenvolvendo campanhas de solidariedade para com os presos políticos, a O.R.A. ganhou um grande prestígio e autoridade junto dos marinheiros e das forças democráticas antifascistas como força revolucionária comunista.

Mas foi a repressão (prisões e expulsões da Armada) exercida sobre 17 marinheiros da guarnição do «Afonso de Albuquerque» que haviam manifestado a sua simpatia e solidariedade às forças patrióticas espanholas, quando Salazar, já iniciada a guerra civil, a pretexto de proteger emigrantes portugueses, enviou para Espanha aquele navio, que fez radicalizar o descontentamento e as preocupações com as crescentes medidas repressivas. Meses antes tinham sido presos mais de 30 marinheiros, incluindo entre eles toda a direcção da O.R.A.

Embora o objectivo mais geral para a revolta, ou pelo menos o mais comum aos defensores da «aplicação de um golpe ao fascismo», fosse a libertação dos presos do NRP Afonso de Albuquerque, o facto é que se «cruzaram» vários objectivos que se foram alterando em função das circunstâncias.

Os acontecimentos do 8 de Setembro comportaram um importante ensinamento há muito confirmado pela experiência teórica e prática: ações militares isoladas e desinseridas da ação de massas, dispondo o poder da possibilidade de utilizar o essencial das forças armadas e repressivas, estão condenadas ao fracasso. Contudo, deveremos sempre valorizar a determinação dos jovens marinheiros e o seu desejo de pôr fim à ditadura.

Ao comemorarmos o seu aniversário da «Revolta dos Marinheiros», ao prestarmos homenagem «aos que na longa noite do fascismo foram portadores da chama da liberdade e pela liberdade», pensamos no passado e no presente. Sentindo o passado, não esquecemos que foi com o resultado da longa luta de todos aqueles que sacrificaram as suas vidas que hoje podemos viver em liberdade, e vivendo o presente com os olhos postos no futuro, travamos a nossa luta em prol da liberdade e democracia, bebendo a coragem dos que realizaram a Revolta de 1936.

Em 21 de Maio de 1999 o Presidente da Republica, Dr. Jorge Sampaio, numa das homenagens prestadas aos marinheiros do 8 de Setembro de 1936, com “várias décadas de atraso” – como referiu, agraciou na pessoa de seis sobreviventes marinheiros Tarrafalistas, com a Comenda da Ordem da Liberdade, o “ato heróico” por eles praticado contra a ditadura do Estado Novo.

«O Dia 8 de Setembro foi designado como o Dia Nacional da Praça das Forças Armadas, na Assembleia Geral, em 31 de Março de 2009»